Conhecimento jurídico | Ambiental
30 junho 2025

Impacto x Dano Ambiental: O Papel Normativo da IN IBAMA nº 20/2024 na Reconstrução da Jurisprudência

No Brasil, a responsabilidade civil ambiental parte de um princípio aparentemente direto: quem causa dano ao meio ambiente deve repará-lo. Mas, na prática, a aplicação desse comando legal esbarra em uma confusão conceitual que compromete a segurança jurídica e desestrutura o sistema de responsabilização: impacto ambiental e dano ambiental não são sinônimos.

Essa distinção, embora elementar do ponto de vista técnico, ainda encontra resistência na jurisprudência. Parte do problema decorre da própria legislação ambiental, que falha ao não definir o que seja “dano ambiental”. A Lei nº 6.938/1981, por exemplo, conceitua “poluição” e “degradação da qualidade ambiental”, mas se omite quanto ao núcleo conceitual da responsabilidade civil. O resultado é um vácuo hermenêutico ocupado, muitas vezes, por decisões judiciais que presumem o dano com base apenas na existência de impactos — mesmo que previstos e autorizados em licenciamento ambiental válido.

É nesse cenário que a Instrução Normativa IBAMA nº 20/2024 se impõe como um marco técnico. Embora voltada à seara administrativa federal, seus conceitos operacionais de “impacto ambiental” e “dano ambiental” oferecem ao Judiciário subsídios objetivos para distinguir os institutos com base na legalidade e na intensidade da intervenção.

O art. 3º, inciso XII, da IN nº 20/2024 define impacto ambiental como “qualquer alteração de atributos ambientais resultante de atividades humanas previamente autorizadas ou licenciadas, que afete os sistemas socioecológicos, sendo que o impacto ambiental negativo difere de dano ambiental, uma vez que é avaliado anteriormente à intervenção, podendo ser evitado, mitigado ou compensado”. Já o art. 3º, inciso V, define dano ambiental como “lesão causada ao meio ambiente, decorrente da degradação de atributos ambientais por meio de omissões, ações e atividades não autorizadas ou em desacordo com as autorizações vigentes, que atente contra o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”.

Essa distinção não é meramente teórica: tem implicações diretas na responsabilização. Classificar como “dano” aquilo que é, na verdade, impacto previsto e controlado subverte os princípios do licenciamento ambiental, compromete a previsibilidade regulatória e penaliza agentes que atuam nos limites da legalidade. Como bem resume Edis Milaré:

“É dizer: não se confundem as noções de impacto, em sentido estrito, e de dano ambiental, propriamente dito: o primeiro decorre dos efeitos que qualquer atividade humana causa ao ambiente; o segundo decorre do grau maior, isto é, de agravos mais sensíveis que essa mesma atividade acarreta (TJSP Ap 0143810-58.2008.8.26.0000)

(…)

Pelo exposto, cabe considerar que o conceito de impacto ambiental, previsto nos art. 1º da Res. CONAMA 1/1986, que remete a alterações das propriedades físicas, químicas e biológicas do meio ambiente causada pela interferência humana, distancia-se do conceito jurídico de dano ambiental, pois, como dito, “o impacto pode consistir em um dano ou não”, de modo que “pode perfeitamente haver impactos sem que haja dano[1]”.

Apesar disso, parte da jurisprudência ainda insiste em presumir o dano a partir da simples constatação de impactos ambientais adversos, mesmo quando inseridos em atividades licenciadas.

O caso do Agravo de Instrumento nº 0008564-94.2022.8.19.0000, julgado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ)[2], é emblemático. Embora o acórdão reconheça que o impacto é “inerente à própria atividade desenvolvida”, conclui que, ainda que amparada por licença ambiental, a atividade poluidora pode gerar dano ambiental, independentemente da comprovação de ilicitude da conduta. Em outras palavras, admite-se a responsabilização civil mesmo diante de atividade autorizada — o que desvirtua o conceito técnico de dano e ignora a função central do licenciamento ambiental como instrumento de gestão de impactos.

O Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial nº 1.989.778/MT[3], também reconheceu, em tese, que impacto ambiental difere de dano, afirmando que o impacto “não se confunde com degradação ou poluição”. Contudo, no plano decisório, o acórdão acabou utilizando os “impactos negativos” como fundamento direto da condenação, sem análise consistente sobre a gravidade, irreversibilidade ou mesmo a existência de uma lesão concreta e não autorizada ao meio ambiente. Ou seja, a distinção conceitual foi reconhecida, mas negligenciada no desfecho do julgamento.

É aqui que a Instrução Normativa nº 20/2024 pode reequilibrar o debate. Ao exigir que o dano decorra de ação ou omissão não autorizada, a norma resgata o papel do licenciamento ambiental como elemento central da legalidade ambiental e estabelece um critério de materialidade e ilicitude para a reparação civil. Como autoriza o art. 4º da LINDB, a analogia pode ser usada para suprir lacunas legais e consolidar parâmetros jurídicos de interpretação, especialmente diante da atual ausência de conceito legal expresso de dano ambiental.

Adotar os critérios da IN nº 20/2024 não significa reduzir a proteção ambiental, mas sim organizar o sistema com base em critérios técnicos e jurídicos. Essa é, na verdade, a única forma de garantir segurança jurídica aos agentes econômicos, racionalidade ao Poder Judiciário e efetividade à tutela ambiental. Se todo impacto — mesmo autorizado — for tratado como dano, o sistema perde credibilidade e se converte em um mecanismo de punição arbitrária.

Assim, incorporar os conceitos da Instrução Normativa IBAMA nº 20/2024 ao debate judicial não apenas é legítimo — é necessário. Essa norma oferece um núcleo conceitual objetivo e dinâmico, compatível com as transformações sociais e ambientais, e suficientemente robusto para evitar abusos, presunções indevidas e distorções jurisprudenciais. Mais que um documento administrativo, ela representa uma oportunidade de corrigir rumos e consolidar um Direito Ambiental mais técnico, previsível e funcional.


[1] MILARÉ, Edis. Direito do ambiente. 10. Ed. Ver., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 320-321.

[2] TJ-RJ – AI: 00085649420228190000 202200212364, Relator.: Des(a). MURILO ANDRÉ KIELING CARDONA PEREIRA, Data de Julgamento: 25/05/2022, VIGÉSIMA TERCEIRA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 03/06/2022

[3] STJ – REsp: 1989778 MT 2022/0065351-0, Relator.: Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, Data de Julgamento: 19/09/2023, T2 – SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 22/09/2023 RSTJ vol. 272 p . 402.

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